Artigos

O patrimônio cultural carioca

Daniel Humberto Basilio Vieira

22

Novembro 2023

por

Laura Di Blasi

Nos últimos anos, nota-se que é cada vez maior a preocupação social e institucional com as questões do patrimônio cultural. O conceito de patrimônio se transformou ao longo dos tempos, na medida em que aumentou a consciência do homem em fazer perdurar as referências materiais de sua existência.

Concomitantemente à vontade humana de preservar seus símbolos, avançaram as discussões sobre as formas de “como” conservar tais heranças, de modo a perpetuá-las às gerações vindouras.

São inúmeras as obras e autores que tratam da evolução do conceito de patrimônio e vastos são os estudos, correntes e pensamentos que discorrem sobre as formas de intervir em edificações de épocas precedentes.

O processo de formação do conceito de patrimônio cultural no mundo ocidental foi construído através dos mais relevantes encontros, documentos, cartas e recomendações publicados sobre o tema e das principais teorias de restauração de monumentos históricos, desde o final do século XVIII até os dias atuais. E é um processo que não finda, pois, assim como a sociedade evolui e se modifica, os conceitos e temas relacionados ao patrimônio cultural estão sempre em debate.

Segundo a historiadora francesa Françoise Choay (2001, p.31), é possível que o surgimento das coleções de obras de arte antigas tenha origem no século III a.C., como antecipação da ideia de museu.

No entanto, este pensamento inicial não estava ligado à perpetuação de registros históricos às gerações futuras. Muitas vezes representavam apenas uma finalidade lucrativa para quem os comercializavam.

Fatos marcantes da história mundial, como a Revolução Francesa, o advento da Revolução Industrial e, já no século XX, a ocorrência das duas Grandes Guerras, geraram crises ideológicas e sérias destruições urbanas, sendo responsáveis por aceleradas transformações sociais e espaciais.

Mas, se por um lado os conflitos ocasionados por estes fatos históricos causaram uma perturbação traumática do meio tradicional, por outro propiciaram um interesse de investigação da cidade antiga. Foi exatamente a partir do empecilho que representavam à nova concepção de organização do espaço urbano que as estruturas antigas ganharam importância e identidade conceitual.

Pode-se deduzir, então, que o desenvolvimento das ideias de preservação do patrimônio cultural se fortaleceu a partir da necessidade humana de estabelecer novas relações de identidade com seu espaço na tentativa de resgatar a memória. Assim, as lembranças que permanecem enraizadas no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, nos objetos e nos fatos, se ligam como em um fio condutor num processo guiado pela continuidade temporal e alicerçam as bases da identidade cultural de um indivíduo, de um grupo ou de uma nação.

É exatamente na continuidade dessas lembranças que reside a garantia da sobrevivência e a transmissão de uma cultura para as gerações futuras.

“[...] bens culturais são o produto e o testemunho das diferentes tradições e realizações intelectuais do passado e constituem, portanto, um elemento essencial da personalidade dos povos.[...]”
Recomendação de Paris, 1968.

Mesmo que cada geração absorva os ensinamentos herdados do passado de forma diferenciada, acrescentando, por vezes, novos elementos ao patrimônio recebido, deve-se cuidar para que o processo transcorra aberto, flexível e, principalmente, harmônico a fim de se evitar o rompimento de todo o equilíbrio e dos suportes coletivos da memória que, de algum modo, conseguem resistir à ação do tempo.
Ao transportar este pensamento para a questão dos patrimônios culturais, pode-se começar por fazer uma correlação a partir do próprio significado do vocábulo “patrimônio”, originário do latim pater, diretamente ligado à herança paterna, ou seja, valores éticos e morais ou objetos materiais legados de pai para filho.

“[...] esse passado, além do mais, estirando-se por todo o trajeto de volta à origem, ao invés de puxar para trás, empurra para frente, e, ao contrário do que seria de esperar, é o futuro que nos impele de volta ao passado [...]”
(ARENDT, 1972)

O INSTITUTO RIO PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE

“[...] das inúmeras cidades imagináveis, devem-se excluir aquelas em que os elementos se juntam sem um fio condutor, sem um código interno, uma perspectiva, um discurso [...].”
(CALVINO, 2003)


Conforme determina o § 1º, do Artigo 216, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, “O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.”

As ações para a tutela do patrimônio cultural no município remontam ao ano de 1979 quando foi instituído o Grupo Executivo do Corredor Cultural, cujo objetivo era, especificamente, estudar as áreas de relevância cultural, situadas na área central da Cidade do Rio de Janeiro.

Em 1986, com a criação da Secretaria Municipal de Cultura, enfim, é criado o órgão normativo, o então Departamento Geral de Patrimônio Cultural – DGPC, que atualmente é denominado Instituto Rio Patrimônio da Humanidade – IRPH, instituído no ano de 2012, ocasião em que a Cidade do Rio de Janeiro obteve a sua primeira declaração de Patrimônio Mundial pela UNESCO.

O IRPH é o órgão responsável pela tutela dos bens materiais e imateriais protegidos pelas legislações pertinentes, pelas áreas declaradas como Áreas de Proteção do Ambiente Cultural, as APACs, e como Áreas de Entorno de Bens Tombados, as AEBTs, e também, em consonância com o IPHAN, pelos Sítios declarados Patrimônio Mundial pela UNESCO. Também atua na divulgação e valorização do nosso patrimônio cultural, através de projetos de publicações, revistas, manuais e cartilhas, concurso de fotografias e do Circuito do Patrimônio Cultural Carioca, com a instalação por todo o município das famosas plaquinhas, que identificam locais e personalidades importantes da cultura carioca.
Atualmente, o IRPH tutela 1.750 bens tombados pela legislação municipal, 10.508 imóveis preservados, distribuídos na mais de 20 APAC e AEBT distribuídas por todo o município.

Além disso, temos 55 bens registrados como Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial, registrados em quatro livros: Livro de Registro dos Saberes, onde são inscritos conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; Livro de Registro das Atividades e Celebrações, onde são inscritos rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social; Livro de Registro das Formas de Expressão, onde são inscritas manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas e o Livro de Registro dos Lugares, onde são inscritos as áreas urbanas, as praças, os locais e demais espaços onde se concentram e se reproduzem práticas culturais coletivas.

O IRPH atua, também, na tutela dos três Sítios declarados Patrimônio Mundial pela UNESCO. São eles: Sítio Paisagens Cariocas entre a Montanha e o Mar (2012), por seu valor universal excepcional de sua paisagem; o Sítio Arqueológico do Cais do Valongo (2017), a mais importante evidência física associada à história da chegada de africanos escravizados no continente americano e o Sítio Roberto Burle Marx (2021), reconhecido na categoria Paisagem Cultural.

SÍTIO PAISAGENS CARIOCAS: ENTRE A MONTANHA E O MAR

A Cidade do Rio de Janeiro foi a primeira área inteiramente urbana e de grandes dimensões, no mundo a ser inscrita na Lista do Patrimônio Mundial como Paisagem Cultural, fruto do reconhecimento do valor universal excepcional de suas paisagens. Composto pelo Parque Nacional da Tijuca e pelas bordas d’águas agenciadas por meio dos projetos urbanísticos implantados ao longo dos anos, este Sítio inclui os principais espaços públicos da cidade, como o Parque do Flamengo, a Praia Vermelha, as orlas de Copacabana/Leme e da Lagoa Rodrigo de Freitas, além dos jardins históricos do Centro da cidade, como o Passeio Público e a Praça Paris e diversos bairros da zona sul, locais onde a convivência entre a natureza e as áreas construídas deram origem à paisagens exuberantes e de grande beleza cênica.

SÍTIO ARQUEOLÓGICO DO CAIS DO VALONGO

O Sítio Arqueológico do Cais do Valongo é a mais importante evidência física associada à história da chegada de africanos escravizados no continente americano, sendo o porto do Rio de Janeiro considerado o maior porto receptor de escravos no mundo. Testemunho de um dos mais terríveis crimes da humanidade, o local evoca memórias dolorosas, com as quais muitos descendentes de escravizados podem se relacionar fortemente, carregando enorme importância histórica e espiritual para os afro-americanos. O entorno do Cais do Valongo se tornou palco de diversas manifestações que celebram a herança africana de forma contínua.

O IRPH detém a guarda do acervo arqueológico proveniente das escavações arqueológicas provenientes, principalmente, da Região Portuária do Rio de Janeiro, durante as obras de requalificação do Porto Maravilha. Para tal, mantém o Laboratório Aberto de Arqueologia Urbana – LAAU – que é responsável pela guarda, conservação e extroversão de cerca de um milhão e meio de itens resgatados nas escavações. Seu principal acervo está associado ao Cais do Valongo, atribuindo a este local uma importância internacional no contexto da diáspora africana, no reconhecimento dos valores da cultura de origem africana, no debate sobre a afirmação da identidade dos seus descendentes e nas questões relacionadas à reparação histórica por trezentos e cinquenta anos de regime escravocrata.

SÍTIO ROBERTO BURLE MARX

O Sítio Roberto Burle Marx, localizado no Maciço da Pedra Branca, em Barra de Guaratiba, foi reconhecido como Patrimônio Mundial, na categoria Paisagem Cultural.

O Sítio, com área de 405.000 m², abriga: coleção botânica com mais de 3.500 espécies de plantas; acervo museológico com mais de três mil itens, além das obras produzidas pelo artista, preservadas no local, e sua biblioteca com mais de 4000 títulos em botânica, arquitetura, paisagismo e outros assuntos. A visitação pública passou a ser permitida no ano seguinte ao falecimento do paisagista, ocorrida em 1994, possibilitando maior intercâmbio entre a obra do artista e a sociedade civil.

Laura Di Blasi, Presidente do IRPH